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Fotojornalista fala sobre cobertura de movimentos sociais e política

Giorgia Prates é graduada pela Universidade Tuiuti do Paraná (UTP), fotojornalista do Brasil de Fato e jornalista pelo jornal Plural no programa "É Nois Conteúdo". Diretora criativa, diretora de fotografia e integrante do CWB resiste que atua no sentido de denunciar os ataques aos direitos humanos.


Prates acompanha movimentos sociais desde 2016, fazendo registros e documentando manifestações, ocupações e passeatas. Na entrevista exclusiva ao Medição, a fotojornalista falou sobre a cobertura de movimentos sociais, manifestações e pautas que não se vê com frequência nos noticiários. Ela também aborda o atual quadro político brasileiro e os obstáculos que o jornalista encontra hoje em dia ao apurar e cobrir pautas sobre política. Dentre os problema recorrentes estão as agressões aos profissionais de imprensa.


Por que decidiu trabalhar com o fotojornalismo?

Eu sou uma mulher preta de favela. Nasci na periferia de São Paulo e sempre tive muito desses questionamentos de como e por quê? Na televisão não tinha essa representatividade, embora não fosse o nome que eu dava, mas nessa sensação que faltava alguma coisa. Por que sempre que a versão contada não era aquela que a gente via das periferias? Isso nos jornais mesmo. E quando era, era uma questão muito sangrenta, sempre muito pejorativa, sempre mostrando o lado ruim das coisas, mesmo. Então têm várias questões que me fizeram sempre questionar isso em relação aos jornais. E eu me mudei para Curitiba, agora tem 10 anos, quando eu fiz a faculdade de Fotografia na Tuiuti. No curso mesmo eu tinha outros interesses. Queria trabalhar com fotoarte, coisas desse tipo, fotografia de cinema, mas não pensava em trabalhar com o fotojornalismo, propriamente dizendo. Mesmo dentro dessa caminhada da universidade conheci uma menina chamada Suelen Lima e ela trabalhava nas ruas com o fotojornalismo. Ela me levou para umas pautas para eu conhecer também, ela já entendia que esse era um bom caminho para mim também. Até por todas as questões sociais que eu estava em vários debates dentro da universidade. E acabou que realmente eu me interessei muito. Eu vi que era uma possibilidade, um caminho de falar sobre questões importantes, que são relevantes, mas acabam sempre ficando ocultadas. E aí, durante 2016, quando teve a ocupação dos secundaristas, foi quando realmente eu pude tomar a decisão. Já tinha finalizado o curso, então eu tive a possibilidade de sair mesmo para as ruas. Acabei pedindo demissão no trabalho que eu tinha na época. Com a rescisão comprei uma câmera e aí eu fui para as ruas mesmo para fotografar, para ajudar nos registros, principalmente dos secundaristas ocupando as escolas porque, naquele tempo, tinha muita criminalização do movimento secundarista. E eu tinha registro de todos eles, tinha da movimentação dos indígenas, dos estudantes, dos funcionários do setor público. Tinham vários movimentos acontecendo na cidade e eu estava em todos eles também. As coisas foram se unindo e acabou que eu consegui entrar no meio do fotojornalismo, sendo conhecida por algumas mídias.

E por que cobrir assuntos como movimentos sociais e manifestações?

Isso de cobrir essas questões de movimento sociais e manifestações tem muito de quem eu sou, de onde eu vim, desse meu histórico de vida. Disso de ser uma mulher preta, lésbica. Acaba que não tem como fugir muito dessa luta pelos direitos, dessa luta pela liberdade de vida. Então, trabalhar com os movimentos sociais e as manifestações, não era mais do que eu poderia fazer por mim mesmo. De não só estar ali na luta também, mas dar voz e ajudar essas pessoas que estavam falando a serem escutadas, a serem vistas, a serem percebidas. E, dentro disso, eu fui vendo e conhecendo um mundo super novo para mim que era de maiores dificuldades, maiores vulnerabilidades do que aquelas que eu já tinha presenciado e vivenciado também. Acho que isso foi um dos marcos que foi me moldando também em relação a estar no mundo e ser o mundo, trabalhar com um lugar que se tem visibilidade, onde as pessoas conseguem ser vistas. Então tive que começar a entender muito esse meu papel também nesse lugar.


Como o jornalismo ajudou a mudar sua visão de mundo?

Eu acho que passo a ter essa mudança da visão de mundo com a quebra da inocência. Você tem toda essa esperança de levar e trazer pautas, de achar o que é relevante e não falar só da fome, mas falar da luta que as pessoas estão tendo e como elas superam, como elas conseguem transgredir essa ausência de políticas públicas, essa ausência do estado e a violência do estado sobre esses corpos. Isso é o que pra mim mudou muito a visão do jornalismo, que eu achava que era isso, a gente fala, as pessoas escutam, criam o pensamento delas a partir da informação real. Mas a gente vai vendo com o tempo que não é bem isso. Existe uma linha editorial, existe aquilo que vai e o que não vai com pauta. Mas isso não me fez parar nem um pouco. Só me fez ver que tem outras formas de se fazer isso e de começar a abrir essas portas, ou outras portas de outras maneiras. E foi uma caminhada dura. Teve vários dias que eu tive que respirar fundo, chorar um pouco, levantar a cabeça e tentar de novo, porque as pessoas na cidade não sabem o quanto é difícil levantar uma pauta de negros e negras. Hoje tenho uma pauta e, se isso não está dando visibilidade, não é fácil colocar isso como pauta. E essas pessoas não têm noção disso, muitas vezes. Elas acham que por ser um acontecimento vai ser dito. Muitas vezes, não. Então isso quebra um pouco de nossa alegria, de estar ali fazendo aquilo, mas não desfavorece no sentido de desânimo. Isso dá mais força, na realidade, para a gente fazer de novo e tentar.


Com o atual quadro social e político, qual conselho você daria para os estudantes de jornalismo?

Quanto mais se aprender, melhor, mais se tem um censo crítico do que está sendo passado, do que está sendo ensinado e qual a linha de raciocínio que está sendo posta ali na sua frente. Existe necessidade de trazer a versão real das coisas, então, quanto mais você se apega ao que está posto, mais você faz parte do mesmo. É mais do mesmo atuando no mundo. Então se você quiser se diferenciar, se quiser trazer para o jornalismo aquilo que é ou deveria ser o jornalismo, tem que ter um censo crítico, começar a olhar para as coisas e acessar o mundo do outro lado da moeda que todo mundo fala, mas do lado de fora. Tem que entrar no mundo das pessoas, tem que conhecer as pessoas, tem que participar dessa vida das pessoas para entender o que está sendo dito e o que você mesmo vai dizer a partir disso. É isso, viver a experiência para se ter o resultado de matérias mais reais.



"É isso, viver a experiência para se ter o resultado de matérias mais reais."


E para as faculdades de jornalismo?

Acho que tem que começar a rever conteúdos, rever referências, rever o que está sendo dito dentro das universidades. Eu já tive dificuldade de fazer fala dentro de universidade e as pessoas nem saberem o que é um quilombo no último ano de jornalismo. Então tem que mostrar mais a realidade, tem que mostrar mais a vida das pessoas, tem que ter mais empatia. Acho que jornalismo não é algo que lida com a vida das pessoas pra gente tornar algo tão mecânico. Acho que as faculdades têm que se rever mesmo, principalmente em questão de referência.


O jornalismo fortalece a democracia?

Sim. Mas eu acho que muito dos jornais existentes ainda agem muito pelo o que é hegemônico. Então a gente tem uma dificuldade principalmente a partir disso. Mas eu acho que o jornalismo fortalece a democracia quando ele é exercido de maneira correta. Quando ele traz a verdade, quando ele traz a informação, quando a tendência dele não é te limitar e te levar para um lado político da força. Então, sim, o jornalismo fortalece. Mas o verdadeiro jornalismo.


Como os recentes casos de agressões aos profissionais jornalistas pode afetar a cobertura dos eventos?

Desde de 2016 estou com os movimento sociais. Já vi coisas muito bárbaras. Essa violência do estado muito forte, o estado armado, já vi coisas muito ruins. Mas, de fato, agora as coisas estão ficando bem piores. Quando se traz essa questão de como pode afetar a cobertura dos eventos, afeta porque afeta a gente moralmente, afeta a gente intimamente, afeta a gente de várias formas tudo que está acontecendo agora. A gente está nas ruas, a gente está tentando fazer o nosso trabalho, mas a gente também está ali em carne e osso. Dá medo. A gente começa a passar a ter pensamentos que a gente não tinha. Mesmo sabendo que é uma manifestação, pode ter a força policial, balas de borracha e tudo mais. Mas agora acho que é diferente. Acho que o medo é maior em outro sentido. Passamos a temer pelas nossas próprias vidas. E é o que eu sinto muito nas ruas hoje. Até por ser um corpo preto eu sei que sou alvo de muitas coisas. Então passo a temer pela minha própria vida e obviamente que isso vai me afetar bastante na cobertura dos eventos sociais que estejam acontecendo.


Qual a importância da liberdade de imprensa e expressão para a sociedade?

Quando a gente perde a liberdade de imprensa, o local de fala, a liberdade de expressão, a gente perde muita coisa. Quando a gente vê que tem uma pessoa num cargo tão importante, que é o de presidente da república, ofendendo jornalistas, ofendendo imprensa e tratando de uma maneira extremamente errada a liberdade que a gente tem de saber o que ele está pensando, de saber o que ele está falando, de fazer perguntas. Então, quando a pessoa tem a liberdade de fazer isso, acho que a gente não está mais vivenciando a plena liberdade de expressão e a gente já está sentindo o peso disso tudo. Mas eu acho que mais pra frete as coisas devem piorar. Esperar pra ver se vamos perder o resto de liberdade que agente tem e também dos ganhos que a gente teve em sociedade até aqui.



O melhor da profissão:

Eu acho que estar nas ruas, conhecer as pessoas, conhecer outras culturas, outros modos de vida.

O pior da profissão:

Acho que não tem pior. Acho que tudo que a gente aprende e vê, por mais triste que possa ser, é aprendizado. De alguma forma, sempre dá para somar.


Ídolos no fotojornalismo:

Tem muitas. Tem o Joka Madruga, tem o Melito Junior, tem o Franklin, Henry Milleo, também a Liz Guedes. São pessoas que sempre estiveram nas ruas e eu sei que são pessoas que quando vão apresentar um trabalho de fotografia, vão fazer da maneira mais certa. Não vai tentar maquiar aquilo que está acontecendo. São pessoas que eu admiro muito e elas me ensinam muito.


Sua melhor cobertura:

Acho que foi na 29 de março no ano de 2017, em que teve um incêndio criminoso da Polícia Militar do estado em uma região, uma ocupação, chamada "29 de março", no CIC. A gente tinha um trabalho no interior. A gente tinha feito já alguns cursos com a comunidade de comunicação e tudo aquilo serviu para periferia, para a favela contar a sua versão e trazer os dados, as informações, as provas de que tudo aquilo que tinha acontecido ali foi criminoso. Então a gente conseguiu publicar isso no Intercept, com todos esses materiais da periferia, da população mesmo. Reuni todos esses materiais e publiquei isso no Intercept junto com o Rafael e isso foi muito importante porque com todas as provas que a periferia juntou, deu para levar aqueles policiais que tiveram aquela ação a julgamento.


O que não pode faltar na mochila de um fotojornalista?

A câmera. Acho que a câmera, lente e boa vontade.


O melhor amigo do fotojornalista é...

A câmera também, sem dúvida nenhuma.


O jornalismo vai acabar?

Se algo acabar vai ser esse jornalismo que está posto agora. Que é esse jornalismo tendencioso, esse jornalismo que não traz a realidade. Acho que esse sim, esse está com os dias contados, sem dúvida. A gente está entendendo cada vez mais, as pessoas estão sentindo cada vez mais qual é o caminho que elas querem para poder se informar. Então as pessoas estão buscando outras mídias e eu acho que essas que são sensacionalistas e tendenciosas, essas sim estão com os dias contados.


O jornalismo é importante?

O jornalismo é muito importante para que as pessoas se informem e que elas entendam a sociedade que elas estão vivendo, para que elas sintam e saibam do lugar que elas estão falando, para que se sintam, entendam a sociedade. Então o jornalismo é muito importante sim até por ser também informativo, então tem muitas questões que envolvem o jornalismo que o tornam de extrema importância.


Lugar de jornalista é...

Na rua. Na rua junto com as pessoas, junto com a comunidade, nas ações, presente nas ações.


Se não fosse fotojornalista, seria...

Eu acho que seria fotojornalista. Daria um jeito de ser isso na minha vida de qualquer jeito. Não queria ser outra coisa, não queria estar em outro lugar.


Qual o recado para os futuros jornalistas?

Que tenham boa vontade. Boa vontade de fazer o seu trabalho, de não ter preguiça de sair do seu lugar de conforto, de ter que mudar pensamentos, de mudar as atitudes, de, às vezes, até jogar fora tudo aquilo que aprendeu para aprender de novo. E que não tenham preguiça de estar nas ruas com as pessoas. E que se arrisquem. Se arrisquem a contar e a trazer pautas que as pessoas não estão falando, a trazer temas que muitas vezes são ignorados, não porque são desconhecidos, mas porque as pessoas não têm interesse em falar sobre eles.


Fotos: Giorgia Prates.



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